terça-feira, maio 25, 2010

LEMBRANÇAS DE UM TEMPO BOM

Meus pais nasceram e cresceram "na roça": meu pai numa vilazinha e minha mãe num sítio, chamado "Quenta-Sol", ambos perto de Sapucaia, já quase na divisa do Rio de Janeiro com Minas Gerais.

Na minha infância, quase todos os domingos de manhã nós saíamos de Teresópolis e íamos visitar a parte da família que ainda morava na Vila Nossa Senhora Aparecida, a tal vilazinha.

Tenho boas lembranças desse tempo, que hoje parece tão distante. A casa dos meus avós não ficava rente ao chão, mas apoiada numa estrutura a quase um metro de altura, aberta em todas as laterais. Em baixo da casa, milhares de coisas velhas ficavam guardadas e eu, meus irmãos e meus primos passávamos horas ali, garimpando tesouros.. até um gramofone tinha lá.

Me lembro também da casinha de sapê do tio João Rosa, na verdade, meu tio-avô. Me lembro dos seus pés rudes, das mãos ásperas, mas que sempre traziam uma novidade qualquer para as "crianças da cidade": uma flor diferente, uma frutinha, um inseto colorido... 

Minha avó criava galinhas e tinha um galo que implicava com uma das minhas tias: era só ver a coitada que ele saía correndo, cacarejando e tentando bicar a mulher que corria, gritando por ajuda. Era uma cena muito, mas muito engraçada mesmo!

Meu avô sentava na poltrona da varanda e ficava horas ali, contando causos e mais causos. 

Minhas tias ficavam na cozinha, ao redor do fogão de lenha, que era feito de cimento tingido de vermelho e sempre tinha o fogo acesso. Pela janela da cozinha, o barulho da bica: a água desviada de um riachinho corria por uma canaleta feita de bambu gigante, que acabava num tipo de tanque, que era na verdade uma pedra escavada. Lembro que a gente colocava uma folha ou uma flor no início da canaleta e ficava acompanhando todo a trajeto, até o tanque. Era muito divertido ver a folha ou a flor descendo pela água, girando e dando um pulinho quando batia nas divisões dos gomos do bambu.

Ao longe, sempre tinha uma bela moda de viola tocando, música caipira de verdade, tipo Pena Branca e Xavantinho, Tonico e Tinoco, Milionário e Zé Rico e por aí vai...

Acho que vem daí o meu gosto por causos e música caipira: eles me trazem esses momentos de absoluta felicidade, e acho que só hoje eu percebi isso.

Bem, tudo isso me veio à mente depois de ter lido um poema lindo, que reproduzo aqui em baixo. Sei que é grande, mas vale a pena ser lido.



A RESPOSTA DO JECA TATU
Autor: Catullo da Paixão Cearense

Seu dotô, venho dos brêdo,
Só pra mode arrespondê
Toda aquela fardunçage
Qui vancê foi inscrevê!

Num teje vancê jurgano
Qui eu sô argum cangussú!
Num sô não, Seu Conseiêro.
Sô norte, sô violêro
e vivo naquelas mata,
como veve um sanhaçu!
Vassucê já mi cunhece:
Eu sô o Jeca Tatu!

Cum tôda essa má piáge,
Vassucê, Seu Senadô,
Nunca, um dia, se alembrô,
Qui, lá naquelas parage,
A gente morre de fome
E de sêde, sin sinhô!

Vassuncê só abre o bico,
Pra cantá, como um cancão,
Quano qué fazê seu ninho,
Nos gáio duma inleição!

Vassuncê, qui sabe tudo,
É capaiz de arrespondê
Quando é que se ouve,
Nos mato,
O canto do zabelê?

Em qui hora é qui o macuco
Se põe-se mais a piá?
E quando é que a jacutinga
Tá mio de se caçá?
Quando o uru, entre as foiage,
Sabe mais asubiá?

Qualé, de todas as arve,
A mais derêita, inpinada?
A qui tem o pau mais duro,
E a casca mais incorada?

Hem?

Vancê nun sabe quá é
A madêra qui é mais boa,
Pra se fazê uma canôa!

Vancê, no meio das tropa,
Dos cavalo, Seu Dotô,
Oiano pros animá,
Sem vê um só se movê,
Num é capáiz de iscuiê
Um cavalo iquipadô!

Eu quiria vê vancê,
No meio de uma burrada,
Somente pur um isturro,
Dizê, em conta ajustada,
Quantos ano, quantas manha,
Quantos fio tem um burro!

Vancê só sabe de lêzes,
Qui si faiz cum as duas mão!
Mais, porém, nun sabe as lêzes
Da Natureza, e qui Deus
Fêiz pra nóis, cum o coração!

Vancê nun sabe cantá,
Mais mió qui um curió,
Gemeno à bêra da istrada!
Vancê nun sabe inscrevê,
Num papé, feito de terra,
Quano a tinta é o do suó,
E quano a pena é uma inxada!

Se vancê nun sabe disso,
Num pode me arrespondê:
Óia aqui, Seu Conseiêro:
Deus nun fêiz as mão do home,
Somente pra ele inscrevê

Vassuncê é um Senadô,
É um Conseiêro, é um Dotô,
É mais do qui um Imperadô,
É o mais grande cirdadão,
Mais, porém, eu lhi agaranto,
Qui nada disso siría,
Naquelas mata bravia,
Das terra do meu Sertão.

A miséria, Seu Dotô,
Tombém a gente consola.
O orgúio é qui mata a gente!
Vancê qué sê persidente?
Eu sô quero ser...
Rocêro e tocadô de viola!

Vancê tem todo dereito
De ganhá cem mil pru dia!
Pra mió podê falá.
Mais, porém, o qui nun pode
É a inguinorânça insurtá,
A gente, Seu Conseiêro,
Tá cansado de isperá!

Vancê diz que a gente
Véve cum a mão no quêxo,
Assentado, sem fazê causo das coisa
Qui vancê diz no Senado.
E vassuncê tem razão!
Si nóis tudo é anarfabeto,
Cumo é que a gente vai lê
Toda aquela falação?

Priguiçôso? Maracêro?
Não sinhô, Seu Conseiêro!

É pruquê vancê nun sabe
O qui seja um boiadêro
Criá cum tanto cuidado,
Cum amô e aligria,
Umas cabeça de gado...
E, dipôis, a impidimia
Carregá tudo, cos diabo,
In mêno de quato dia!...

É pruquê vancê nun sabe
O trabáio disgraçado
Qui um home tem, Seu Dotô,
Pra incoivará um roçado...
E quano o ôro do mío
Vai ficano inbunecado,
Pra gente, intoce, coiê,
O mío morre de sêde,
Pulo só isturricado,
Sequinho, como vancê!

É pruquê vancê nun sabe
O quanto é duro, um pai sofrê,
Veno seu fio crescendo,
Dizeno sempre:
Papai, vem mi insiná o ABC!

Si eu subesse, meu sinhô,
Inscrevê, lê e contá,
Intonce, sim, eu havéra
Di sabê como assuntá!
Tarvêis vancê nun dexasse
O sertanejo morrendo,
Mais pió qui um animá!

Pru módi a puliticaia,
Vancê qué qui um home saia
Do Sertão, pra vim... votá?...
In Juaquim, Pêdo, ou Francisco,
Quano vem a sê tudo iguá?...

Priguiçôso? Madracêro?
Não!.. Não sinhô, Seu Conseiêro!

Vancê nun sabe di nada!
Vancê nun sabe a corage
Qui é perciso um home tê,
Pra corrê nas vaquejada!
Vossa Incelênça nun sabe
O valô di um sertanejo,
Acerano uma queimada!

Vamicê tem um casarão!
Tem um jardim, tem uma cháca.
Tem um criado de casaca
E ganha, todos os dia,
Quer chova, quer faça só,
Só pra falá... cem mirré!

Eu trabáio o ano intero,
Somente quando Deus qué!
Eu vivo, no meu roçado,
Mi isfarfando, como um burro,
Pra sustentá oito fio,
Minha mãe, minha muié!

Eu drumo inriba de um côro,
Numa casa de sapé!
Vancê tem seu... ortromóvi!
Eu, pra vim no povoado,
Ando dez légua, de pé!

O sór, têve tão ardente,
Lá pras banda do sertão,
Qui, in meno de quinze dia,
Perdi toda a criação!

Na semana retrasada,
O vento tanto ventô,
Qui a paia, qui cobre a choça,
Foi pus mato... avuô!

Minha muié tá morrendo,
Só pru farta de mezinha!
E pru farta de um dotô!
Minha fia, qui é bunita,
Bunita, como uma frô,
Seu Dotô, nun sabe lê!

E o Juquinha, qui inda tá
Cherano mêmo a cuêro,
E já puntêia uma viola...
Si entrasse lá, pruma iscola,
Sabia mais que vancê!

Priguiçôso? He... Madracêro?
Não... Não sinhô, Seu Conseiêro!...

Vancê diga aus cumpanhêro,
Qui um cabra, o Zé das Cabôca,
Anda cantano esses verso,
Qui hoje, lá no Sertão,
Avôa, de boca em boca:

(cantado)

Eu prantei a minha roça,
O tatu tudo cumeu!
Prante roça, quem quisé,
Qui o tatu, hoje, sou eu!

Vassuncê sabe onde tá o buraco
Adonde véve o tatu esfomeado?
Han?... Tá nos paláço da Côrte,
Dessa porção de ricaço,
Qui fêiz aquele palaço,
Cum sangre do disgraçado!

Vancês tem rio de açude,
Tem os dotô da Ingêna,
Qui é pra cuidá da saúde...
E nóis?... O qui tem? Arresponda!

No tempo das inleição,
Qui é o tempo da bandaiêra,
Nós só tem uma cangaia,
Qui é pra levá todas porquêra,
Dos Dotô Puliticáia!...

Sinhô Dotô Conseiêro,
De lêzes, eu nun sei nada!
Meu derêito é minha inxada,
Meu palaço é de sapé!
Quem dá lêzes pra famía
É a minha boa muié!

Vancê qué ser persidente?
Apois, seja!
Apois seja, Meu Patrão!
A nossa terra, o Brasí,
Já tem muita inteligênça,
Muito home de sabença,
Qui só dá pra... ó, ispertaião!
Leva o Diabo, a falação!
Pra sarvá o mundo intêro,
Abasta tê... coração!

Prus home di intiligênça,
Trago comigo essa figa:
Esses home tem cabeça.
Mais, porém, o qui é mais grande
Do que a cabeça... é a barriga!

Seu Conseiêro... um consêio:
Dêxe toda a birbotéca dos livro!
E, se um dia, vancê quisé
Passá ums dia de fome,
De fome e, tarvêiz de sêde,
E drumi lá, numa rêde,
Numa casa de sapê,

Vá passá comigo uns tempo,
Nos mato do meu sertão,
Que eu hei de lhe abri a porta
Da choça... e do coração!

Eu vorto pros matagá...
Mais, porém, oiça premêro:
Vancê pode nos xingá,
Chamá nóis de madraçêro.
Purquê nóis, Seu Conseiêro,
Nun qué sê mais bestaião!
Não!.. Inquanto os home di riba
Dexá nóis tudo mazombo,
E só cuidá dos istombo,
E só tratá di inleição...

Seu Conseiêro hái de vê,
Pitano seu cachimbão,
O Jeca-Tatu se rindo,
Si rindo... cuspindo
Sempre cuspindo,
Co quêxo inriba da mão!

Eu sei que sô um animá,
Eu nem sei mêmo o que eu sô.
Mais, porém, eu lhe agaranto
Qui o qui vancê já falô,
E o qui ainda tem de falá,
O qui ainda tem de inscrevê,
Todo, todo o seu sabê,
E toda a sua saranha...
Não vale uma palavrinha,
Daquelas coisa bunita,
Qui Jesuis, numa tardinha,
Disse, inriba da montanha...



Segundo Rolando Boldrin, Catulo da Paixão Cearense escreveu esse poema como uma resposta a um senador que disse numa entrevista que o caipira era um preguiçoso, por isso o nome "A Resposta do Jeca Tatu".

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sábado, maio 22, 2010

O ABRAÇO DO AVÔ

Naquela noite, ela foi dormir cedo, de tanto cansaço. Acordou de madrugada e ficou mais de uma hora tentando dormir e não conseguiu.

Pegou os óculos, tateando a mesinha de cabeceira no escuro. Levantou, ligou o computador e foi ver o que estava acontecendo no mundo virtual. Nada que despertasse interesse. Tirou os óculos. Chorou. Resolveu ler um pouco e pegou o livro que estava mais perto, por acaso, era a Bíblia. Abriu aleatoriamente em uma página e viu que, apesar das dores, estava fazendo o que era necessário naquele momento. Chorou mais um pouco, agradecida e aliviada, mas ainda triste.

Desligou tudo e resolveu voltar para cama. Dormiu, sonhou. Estava no quintal de uma casa antiga, conhecida. De repente, a porta se abre e ela vê o avô, que a chamava como nos tempos de menina. Corre para perto dele e recebe um abraço, que conforta e traz paz. Presta atenção para aproveitar cada instante daquele encontro: a textura da pele, o olhar, os poucos cabelos, o sorriso, a camisa azul, a calça clara. Não queria perder nenhum detalhe, nem sabia que estava com tanta saudade.

Acordou chorando, mas em paz. Descobriu que o abraço do avô era tudo o que ela precisava naquela madrugada. E ele veio abraçar a neta; só em sonho, mas veio.

Foi a segunda vez que ela sonhou com o avô, que falecera há quase vinte anos.


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