sexta-feira, abril 28, 2006

O MEU CARANDIRU


(Reflexão sobre uma visita que fiz a um dos presídios aqui do Rio, no dia 01/abril/2006)

Uma das coisas que me chamou a atenção quando li “Carandiru”, livro do Dráuzio Varella, foi ele ter dito que quando entrava ali, entrava como médico, não como juiz: não importava o que aqueles homens tinha feito para estarem ali, importava cuidar da saúde deles, para que tivessem um pouco de dignidade. Admirei muito a postura dele, mas me intrigava como ele conseguia fazer isso.

Sábado passado eu fiz a minha primeira visita a um presídio, junto com mais três pessoas da minha igreja, a Adenice, a Márcia e o Gustavo. Quando cheguei lá, foi impossível não me recordar do livro (o filme eu não vi, por opção... achei que iria me chocar muito). Logo na entrada do complexo penitenciário, um sargento um tanto truculento quis fazer seu show... disse que não poderíamos entrar com as bolsas... que deveríamos deixar tudo no carro... uma chatice... Mas quando viu que Adenice, a capelã prisional, não deu muita bola pra ele e disse que isso era resolvido na portaria lá de dentro, ele resolveu parecer que estava fazendo um favor e nos deixou ir...

Andamos até o portão da unidade Muniz Sodré, um presídio masculino. Chegamos no horário da entrada das visitas... mulheres, crianças, sacolas de roupas e comida... uma fila organizada, todo mundo conversando baixo... os rostos não eram tristes, conformados talvez... Nós entramos por um portãozinho lateral, de ferro, pintado de azul, com uns buraquinhos por onde alguém perguntou quem era. Adenice respondeu e ele abriu uma janelinha minúscula, por onde ela passou a autorização que tínhamos para entrar. Ele então abriu o tal portão e entramos para a revista. Nada de mais... um portal detector de metais, uma olhada nas bolsas... não poderíamos entrar com documentos de tipo algum, chaves, celulares... Preferi deixar a bolsa inteira, e todo mundo do grupo colocou seus pertences dentro dela, exceto a Adenice, que deixou seus documentos mas levou a bolsa... e ainda falou para o guarda que estava com máquina fotográfica para tirar umas fotos do pessoal...

Enquanto estávamos ali, uma pequena fila das visitas que já tinham sido revistadas ia se formando junto a um outro portão. O silêncio delas, das crianças inclusive, era meio perturbador. Quando a fila alcançava um certo número de pessoas, este portão interno era aberto e elas podiam entrar. Nós não precisamos passar por esse processo; acabada a revista, o guarda nos levou ao portão e o abriu.

Andamos um pouco em um pátio cercado por muros altos até chegarmos em outro portão... Do lado de dentro, mais uma sala e mais um portão... finalmente o pátio onde participaríamos do culto!

Entrar nesse pátio foi estranho... a sala anterior era meio escura e ali, no pátio descoberto, com seus muros altos pintados de branco – uma pintura velha, já meio desgastada, parecia ser de cal – era muito claro, apesar de não ser um dia de sol aberto... O chão muito limpo, bem varrido... No meio, um pedestalzinho de cimento com uma torneira.

Logo de cara lembrei do livro... o pátio era quase um quadrado de uns 20 x 30 metros, mais ou menos. Encostados nas paredes, alguns casais namoravam, trocavam abraços, olhares, carinhos, beijos... como qualquer casal de namorados. Em um dos cantos, uma lona azul demarcava uma barraca improvisada onde uma família de seis a oito pessoas conversava, sentada em colchonetes; tinha até ventilador e televisão.

No fundo do pátio, o culto já tinha começado. Era dirigido por presos convertidos. Todos muito bem arrumados, penteados, calça comprida, camisa de mangas compridas, sorrisos nos olhares. Quando nos viram, o sorriso passou também para os lábios. Fomos até eles, que nos cumprimentaram - as mulheres com apertos de mão e Gustavo recebeu alguns abraços.

De repente, um garotinho com o cabelo descolorido para ficar loiro, todo molhado e vestindo uma sunga chega, olha para a Márcia, dá um sorriso enorme e sai correndo... Márcia é a responsável pelo trabalho com as crianças que vão visitar os pais. Em pouco minutos, ele volta com mais umas dez crianças, todas molhadas... Fico imaginando que deveriam estar em algum tipo de piscina e que para saírem de lá para ouvir uma história, devem estar muito sedentas... A Adenice pega o microfone e avisa que iria começar a historinha para as crianças; em pouco tempo, pais e mães começam a trazer seus filhos, saindo de um portão lateral que dá em um outro pátio, mais parecido com um corredor largo.

Quando a historinha começa, as crianças ficam todas sentadas, quietinhas, prestando atenção. Márcia faz um paralelo entre alguém que entra no mar sem saber nadar e a vida das pessoas sem Deus... usa uma bóia para simbolizar a salvação. Um menino canta uma música e começa a chorar... Quando termina essa parte do culto, Márcia apresenta o plano de salvação pra ele e ele aceita a Jesus. Emocionante!

Acabada essa parte, Gustavo toma a palavra e vai pregar para os adultos. Durante esse tempo, eu fico distribuindo uns folhetos e conversando com as pessoas que passam pelo pátio. O que me chama a atenção é o respeito que eles demonstram; mesmo quem não estava muito interessado, ouve, agradece, guarda o folheto. Algumas mulheres pedem oração por seus filhos e maridos; ao orarmos com elas, choram, nos abraçam... Começa a cair uma chuva fina... mas as pessoas continuam ali. No final, várias pedem bíblias e orações.

Na hora de ir embora, os presos que dirigiam o culto nos agradecem muito, apertam as nossas mãos e nos oferecem um sorriso discreto... de novo, só Gustavo é abraçado. Muito interessante esse respeito físico por nós, mulheres...

Na saída, de novo a fila das visitas, o silêncio das mulheres e crianças que esperam ser liberadas. O portão que se abre quando a fila atinge um determinado número de pessoas. O sorriso meio triste de quem já está com saudade daqueles que ficaram do lado de dentro. O guarda nos chama e passamos à frente das pessoas, ninguém reclama. Recebemos nossas coisas e saímos pelo portão azul. A chuva aumenta... andamos até a entrada principal e fico toda molhada de chuva.

Deixo pra trás um mundo completamente diferente... eu me sinto diferente... entendi o que o Dráuzio fala sobre não julgar aquelas pessoas... enquanto estava ali, não soube o que cada um fez para ser preso e nem quis saber depois... Penso nas crianças, que passam o sábado numa prisão, brincando com seus pais, sorrindo felizes, como quaisquer outras crianças. Penso nas mulheres, que só podem contar com seus maridos por um dia... quanta coisa pra se conversar em tão pouco tempo! Penso nas mães, que só podem cuidar de seus filhos nas tardes de sábado... quanta saudade! Penso em cada um dos presos com quem conversei ou que apenas vi... e vejo como somos iguais diante de Deus... os pecados deles não são maiores dos que os meus... o mesmo amor que Deus tem por mim, também tem por cada um deles... o mesmo sangue que Jesus derramou por mim, também derramou por eles!

Amor e sangue que nos dão a certeza de um dia nos encontrarmos com o Pai... e a esperança de que muitos que estão ali também estarão nesse encontro!




(este texto também está no site http://www.crerepensar.com.br , na seção Espaço Aberto)

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Um comentário:

Anônimo disse...

nossa...adorei esse texto...gostei mesmo....vc sabe q eu adoro textos assim...e esse me fez ter uma nova visão..assim como quem conta issu....adorei...mesmo..sempre q tiver novo me avisa....bjus!!!!!!!!

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