Na quarta-feira passada, dia 12, minha mãe me ligou logo cedo de Teresópolis e disse que uma enchente, com lama e pedras tinha acontecido na Posse – um bairro da cidade – e tinha afetado severamente a casa de minha tia, e que a chuva tinha provocado um deslizamento na Barra do Imbuí e soterrado uma casa, causando a morte da sogra de uns amigos dela. Até então, parecia ser apenas mais uma enchente, grande, mas só mais uma enchente.
Durante o dia, fui percebendo que tinha sido mais grave do que parecia a princípio. Com os telefones (tanto fixos como celulares) de lá ruins, e sem acesso direto à internet durante o dia, só consegui obter pedaços de informações. Na hora do almoço, fui num restaurante que tinha uma TV ligada e então comecei a entender a dimensão da tragédia.
Estando no Rio, longe da minha cidade, da minha família e dos meus amigos que moram lá, e sem poder acompanhar as notícias, a angústia foi crescente. A vontade de estar lá, ver de perto família e amigos, ver ao vivo o que a TV mostrava, era enorme. Mesmo sem saber o que fazer, eu queria estar lá. Na sexta-feira, durante a tarde, resolvi que no dia seguinte subiria a serra.
Sábado de manhã, decidi que iria faltar ao oftalmologista para chegar mais cedo em Teresópolis. Arrumei algumas roupas para levar para serem doadas, procurei um tênis que agüentasse a lama, alimentei os bichos (Geléia, um hamster; e Dekafeinè, uma ratinha) e fui embora.
Sozinha no Baby (meu Ford Ka, velho companheiro de aventuras), eu imaginava o que iria encontrar, relembrando as imagens da TV. Na subida da Serra, caminho que já fiz inúmeras vezes, meu coração foi tomado por uma emoção diferente, uma excitação meio assustada. Uma chuva fina começou a cair e os topos das montanhas estavam cobertos por nuvens. Uma neblina leve começou a baixar. Às vezes, tenho a impressão de que a serra de Teresópolis é o único local do mundo onde chuva e neblina acontecem ao mesmo tempo. Na minha frente, uma pick-up estava abarrotada de garrafas de água mineral; achei que seria mais uma doação. Todo esse cenário me fez sentir como um daqueles caçadores de tempestades americanos que de vez em quando vemos no Discovery Channel: o clima chuvoso, a expectativa do cenário de destruição em partes da cidade.
Assim que cheguei, fui direto para casa da minha mãe. Lá encontrei uma das minhas tias. Ela mora (morava?) no bairro da Posse, numa casa que foi atingida pela enxurrada de lama e pedras; a piscina e a churrasqueira ficaram sob a lama; no primeiro andar da casa, a lama atingiu mais de um metro de altura. Ela ainda teve tempo de socorrer três famílias vizinhas e abrigar todo mundo no segundo andar da casa. Como a luz acabou, só conseguiam ver alguma coisa quando um relâmpago cortava o céu, e o que viam eram assustador: uma correnteza de lama e pedras enormes vindo em direção à casa, que resistiu. Quando o dia amanheceu, três corpos foram achados no quintal. Ela acha que outros podem estar encobertos pela lama.
Depois de ouvir isso, saí para encontrar Junior, Victor e Renato, os amigos com quem iria distribuir os donativos. Enquanto passávamos por uma casa onde amigos perderam um familiar, vimos uma cena emocionante: enquanto algumas pessoas estavam aumentando o preço do galão de água, uma senhora, que possui um poço artesiano em casa, colocou uma placa onde estava escrito “água limpa” e distribuía água gratuitamente para quem quisesse. Chorei.
Éramos quatro pessoas espremidas dentro um carro minúsculo, entulhado de coisas: garrafas de água, toalhas de banho, roupas, sabonetes, creme dental. No caminho, uma amiga do Victor apareceu com várias sacolas de compras e pediu que levássemos para ela. E lá fomos nós, rumo a Bonsucesso, no 3º distrito da cidade, uma das regiões muito afetadas e com um dos maiores números de mortos até então.
A chegada lá até que foi tranqüila, apesar de alguns pontos com quedas de barreiras na estrada. Os donativos estavam sendo entregues na Igreja Católica da região e estavam sendo muito bem organizados. Voluntários montavam kits que eram entregues aos desabrigados. Uma Kombi de uma igreja Assembléia de Deus saiu abarrotada de donativos. Quando estávamos saindo, dois caminhões do exército estavam chegando com mais doações.
Resolvemos continuar pela estrada, até chegar a Vieira, outro bairro muito afetado. No caminho, íamos vendo o rastro da destruição causada pelas chuvas: muito entulho nas margens dos rios, muitos carros retorcidos, casas desmoronadas, várias quedas de barreiras. A chuva começou a ficar mais forte e resolvemos voltar para a cidade.
Passamos na Primeira Igreja Batista, onde a Força Nacional está alojada. Foi uma visão meio surreal: um monte de soldados, com roupas camufladas e armados, perfilados e recebendo ordens dentro da igreja, que está em construção. Ali também estavam sendo recolhidos donativos e feita a montagem de cestas básicas.
Quando cheguei em casa, encontrei o meu irmão mais novo, que está trabalhando na identificação dos corpos que são resgatados. Ouvi histórias muito, muito tristes, como a do pai que estava indo lá levar a própria filha, que ele mesmo retirou dos escombros. O meu outro irmão trabalha fora de Teresópolis, em Minas, e não pode voltar para casa por causa das estradas fechadas.
Interessante notar que mesmo tendo andado o dia todo, carregando donativos, visitando lugares, as sensações de inutilidade e impotência eram enormes. Fui dormir exausta, mas não consegui um sono tranqüilo e pouco depois das cinco da manhã de domingo já estava acordada.
No domingo, duas amigas de Niterói chegaram com uma Doblô carregada de donativos. Deixamos tudo na Igreja Batista em Barra do Imbuí (que está fazendo um trabalho excelente de coleta e distribuição) e partimos em direção ao Caleme, um dos bairros mais afetados da zona urbana de Teresópolis.
A chegada até lá só é possível porque um dos condomínios de luxo da região abriu suas ruas internas, pois a ponte que dá acesso ao Caleme teve sua estrutura abalada. Andamos a pé no meio do que restou de casas e carros. Parecia cenário de filme de guerra. Muito mais impressionante do que eu poderia imaginar pelo que vi na TV.
A Igreja Batista do Caleme está sendo o ponto de apoio da região: recebe e distribui donativos e também fornece alimentação para os voluntários, mesmo estando sem luz desde o dia da tragédia.
No Caleme encontramos um grupo de Trilheiros, os motoqueiros que estão sendo responsáveis pelo resgate de pessoas e também pelo transporte de alimentos e medicamentos em áreas onde as outras equipes não tem acesso. Um primo muito querido está trabalhando entre eles. Os Jipeiros de várias regiões do estado do Rio também estão fazendo trabalho semelhante.
Já na hora de voltar para o Rio, parei perto do IML. Na verdade, o IML de Teresópolis é muito pequeno e foi montada uma estrutura de emergência usando uma loja vazia em frente ao prédio oficial. Uma loja de madeiras que fica ao lado doou material para que fossem feitas as mesas onde os técnicos de necropsia trabalham. O dono dessa loja é um amigo que não vejo há muito tempo. Como não há condições para armazenar os corpos até que seja feita a identificação, vários contêineres frigoríficos estão sendo usados para este fim. São pelo menos cinco, estacionados em frente ao IML. Quando cheguei lá, uma moça estava fazendo o reconhecimento do pai. A cena era de uma tristeza sem tamanho e, sem dúvida, vai ficar gravada na minha memória.
Estava chovendo – como esteve durante todo o fim de semana – e voltei para o carro. Não tenho como descrever o que estava sentindo. O cenário de guerra causa tristeza e espanto. Mas ver a união de tanta gente para tentar ajudar traz um pouco de esperança.
Eu sei que em muito pouco tempo esta tragédia vai ser esquecida, assim como são tantas outras. Para quem está de fora, é fácil esquecer. Mas quem sobreviveu a essa situação vai continuar precisando de apoio para reconstruir a vida. Como isso vai ser feito eu não sei. Mas sei que não consigo fingir que isso não tem nada a ver comigo.
Fotos aqui: http://www.flickr.com/photos/65939722@N00/
.